terça-feira, setembro 27, 2005

Segundo encontro do Fotopalavra inverte os papéis documentais e ficcionais da fotografia

O que poderia haver em comum entre as imagens da São Paulo provinciana capturadas por Militão Augusto de Azevedo, na segunda metade do século XIX, e as do fotógrafo contemporâneo Cássio Vasconcellos? A costura desse diálogo ficou por conta do historiador Boris Kossoy, que apresentou uma fala apaixonada sobre fotografia no segundo encontro do Fotopalavra, evento promovido pelo Itaú Cultural e pela Companhia das Letras.

Mais de um século de urbanização e tecnologia fotográfica separa a produção dos dois. A distância permite classificar a fotografia de Militão como histórica. Ele registrou São Paulo em dois momentos, nas décadas de 60 e de 80 do século XIX. Passados vinte anos não há grandes mudanças na cidade tampouco no aparato fotográfico. Cássio apresentou a São Paulo de hoje em duas séries de fotografias aéreas e em sua série de Polaroids Noturnos. Não é errado supor que, passados vinte dias, as paisagens registradas por Cássio já não sejam as mesmas.

Na primeira série, ele tenta captar toda a cidade por meio da fotografia aérea. Tarefa impossível em uma metrópole que se estende num horizonte infinito. Consciente disso, as suas Panorâmicas Verticais, tomadas em uma manhã de carnaval, se aproximam mais da representação da cidade pois nelas Cássio recorta situações que se repetem e se prolongam por toda São Paulo. Essa série propõe um jogo de relações para além do que se vê nas fotografias. Tal conceito vai ser tomado em maior proporção em Noturnos.

Nessa série, embora seja difícil reconhecer os locais fotografados, por mais que sejam os ícones da cidade, Cássio chega mais próximo do registro do que é a São Paulo contemporânea. Fica evidente que tal tarefa não cabe mais em uma única imagem, como nas de Militão. Somente por meio da subjetividade é possível captar o caráter fugaz que é a essência das metrópoles. A transitoriedade das cidades não cabe em uma iconografia que seja espelho do mundo.

As luzes, as cores e os enquadramentos da São Paulo de Cássio causam estranhamento. Noturnos é o oposto da São Paulo caótica que vemos com nossos olhos. Mas através de sua Polaroid enxergamos o que os olhos não vêem: o vazio, o desolamento e a incomunicabilidade, frutos da efemeridade urbana que condiciona não somente as relações do homem com a cidade mas, até mesmo, suas relações afetivas.

Esse caráter ficcional também pode ser, em menor grau, vislumbrado na fotografia de Militão se considerarmos que a São Paulo registrada por ele já não existe mais, também é objeto do imaginário. Ou, como colocou Eder Chiodeto, fotógrafo e mediador do Fotopalavra: “Estamos diante de uma ficção que possivelmente vai virar documento e de um documento que virou ficção”. E Boris Kossoy arremata: “E que ambos vão virar história.”

Rafaela Pires